Revista Domingo / CM - Ricardo Chibanga “Tive Muita Glória e Carinho de Todos”

“Tive Muita Glória e Carinho de Todos” 
“Tive muita glória e carinho de todos”Ricardo Chibanga ainda hoje, aos 73 anos, é reconhecido na rua como um dos maiores toureiros de todos os tempos.

Com Amália Rodrigues e Eusébio formou o triunvirato dos embaixadores de Portugal além fronteiras. Chibanga era um nome que toda a gente conhecia. ‘El Africano’, conforme anunciavam os cartazes da festa brava, foi efetivamente o primeiro matador de touros negro no Mundo. Teve Pablo Picasso e Salvador Dalí a aplaudi-lo de pé, nas bancadas. O último diria aos jornais espanhóis, aos 89 anos, que Chibanga era "o único homem capaz de ainda o levar a uma arena". Pelo gesto certeiro com a espada, o olhar sereno e o estilo incomparável com que fez a história que ainda ninguém esqueceu nos meandros da tauromaquia. 


Ricardo Chibanga nasceu no bairro de Mafalala, o mesmo de Hilário, Eusébio, Coluna e outras lendas moçambicanas. Com todos manteve estreitos laços de amizade, mas Eusébio era especial. "Fizemos a quarta classe juntos e mantivemos sempre uma ligação muito forte, também em Portugal. Foi uma amizade eterna. Ele não era propriamente um aficionado, mas ele gostava de me ver tourear e triunfar. Da mesma forma que eu também gostava muito de o ver jogar a ele e aos outros moçambicanos", afirma o antigo matador, que nas bancadas futebolísticas nunca teve clube. "O meu coração é da Seleção nacional". 

Apesar das dificuldades, viveu uma "infância feliz". Mafalala era "um bairro bonito". Chibanga tinha seis irmãos. A mãe vendia camarão no mercado, o pai trabalhava a servir nos cafés de Maputo. Depois de vir tourear para Portugal, em 1962, esteve quase dez anos sem lhes pôr a vista em cima, mas assim que teve condições económicas para isso ajudou a família inteira. "Comunicava com a família por carta. E às vezes doía muito, claro, sobretudo pela saudade que tinha da minha mãe. Nunca é fácil quando se quer muito triunfar. Mas vir para Portugal era a minha oportunidade de ter uma vida melhor e eles tinham muita esperança de que eu conseguisse vencer e apoiavam-me muito, mesmo à distância. Eles não percebiam nada do que era tourear, mas tinham orgulho por saber que ia conseguindo alguns feitos. Se bem que isso não resolve a saudade... Eles moravam no caniço e eu tinha pena de saber que a minha mãe, coitada, tinha de acartar a água à cabeça quilómetros, desde a cantina até à nossa casa. Assim que pude mudei isso", diz.

PAIXÃO PELA FESTA
Em boa verdade, nem o próprio Chibanga sabia muito bem ao que ia quando começou a tourear. "Vi uma tourada pela primeira vez em Moçambique com 14 anos e foi assim uma espécie de paixão súbita. Fiquei deslumbrado com o traje - era tão bonito! Foi a festa que me seduziu, porque eu não percebia nada, mesmo nada, do que era o toureio! Mas fiquei com vontade de experimentar e aprender", recorda. Então passou a andar sempre por perto dos touros e das suas gentes. Sempre que havia tourada em Lourenço Marques (hoje Maputo), oferecia-se para ajudar. Colava os cartazes, ajudava a limpar e lá o deixavam entrar. "Depois, tive a sorte daquelas pessoas dos touros acharem que eu tinha qualidades para ser toureiro e resolveram trazer-me para Portugal", conta. Essas pessoas eram Alfredo Ovelha e Manuel dos Santos. O primeiro era um reputado empresário da festa brava, o segundo na época ainda era toureiro, tendo depois ficado com a exploração de uma série de praças em Portugal, incluindo a do Campo Pequeno, em Lisboa. "Não sei como, mas eles lá falaram com o governador, que nos deu as passagens num avião da Força Aérea. Assinaram um termo de responsabilidade e foi assim que eu e o meu amigo Carlos Mabunga aterrámos em Lisboa. A ideia inicial era ficarmos apenas três meses, na escola de toureio de Torres Novas. Nessa altura, estava longe de saber que só iria regressar a Moçambique dez anos depois. Depois, levaram-me às festas da Nazaré, onde assisti a uma corrida do Manuel dos Santos e do Diamantino Viseu. No dia seguinte, puseram-me à frente de uma vaca e as pessoas acharam graça ver dois pretinhos a correr à frente da vaca e já não nos deixaram voltar. Depois então é que fui para a escola e mais tarde fixei-me na Golegã, onde treinei muito, com a ajuda dos ganadeiros, dos toureiros, das gentes dos touros que me incentivavam muito", recorda. Ainda hoje é assim. Da esplanada do Café Central, na vila que é a capital do cavalo, não há ninguém que não reconheça de imediato o porte ainda firme, o olhar seguro e tranquilo no cumprimento que ninguém dispensa.

A CAMINHO DA GLÓRIA
Ricardo Chibanga chegou a Portugal no ano de 1962 e não esquece a sua primeira impressão de Lisboa. "Era tudo lindíssimo. Eu vinha de uma sanzala e aquelas casas boas, todas bonitas, as ruas ... fiquei espantado porque não havia pretos! Naquela época, quase não havia pretos em Lisboa! Para mim era uma prenda, a concretização de um sonho. Era a oportunidade de ter uma vida completamente diferente. Uma vida de glória", justifica. Foi treinando nas vacadas e foram-lhe reconhecendo audácia e talento nas feiras. A pouco e pouco foi conquistando as praças nacionais e em 1968 chegou ao Campo Pequeno, de onde viu sair o primeiro touro ‘a sério’. Uma besta com mais de 500 quilos de peso. Mas aí já Chibanga tinha um certo jeito e treino para domar o medo. "Está sempre lá. Não há toureiro nenhum que não tenha medo, só que aprende a dominá-lo. E quando se gosta, quanto mais se toureia mais confiança se adquire", nota. Mas não há currículo de toureiro, a pé ou a cavalo, sem alguns momentos dramáticos. Chibanga também teve os seus e guarda no corpo as marcas de quem um dia se atreveu a arriscar a vida. "Apanhei muitos sustos e cornadas. Algumas foram muito duras e das quais tive a sorte de escapar com vida. Mas o incidente que mais mazelas deixou foi com uma bandarilha. Perdi uma vista depois de uma me ter passado mesmo por baixo do olho, quando estava a tourear de joelhos. Fui prontamente socorrido no hospital mas com o tempo acabei por perder totalmente a visão de um lado." Nessa altura tinha 28 anos. Não abdicou da profissão, mas deixou de conduzir. "Desistir dos touros nunca! Desisti foi de conduzir porque sem visão de um lado não me sentia à vontade na estrada..." Mas voltando ao final da década de 60, depois do Campo Pequeno, a sorte de Chibanga foi começando a desenhar-se internacionalmente. Antonio Bienvenida, então conhecido como ‘el papa’ do toureio, concedeu-lhe a Alternativa em 1971, numa apoteótica corrida na Maestranza de Sevilha. Depois Madrid, Barcelona, França e até a América renderam-se a seus pés. "Foram muitos os momentos de glória. Recordo a Alternativa como um dos mais importantes porque é uma espécie de doutoramento do toureiro. Mas houve outros muito importantes. A mim, o que me dava felicidade era sentir as pessoas felizes. Sentir o carinho e a admiração delas. Aplaudiam-me, ovacionavam-me de pé, motivavam-me para continuar a ser toureiro", recorda. Só dez anos depois regressou à sua pátria para tourear e rever a família. "Toureei apenas duas vezes em Moçambique porque era sempre complicado conciliar datas. Eu era muito requisitado e os empresários queriam ter sempre a contabilidade positiva. Foi um dos momentos mais felizes da minha vida. Saí em braços, perante os olhos da minha família e foi muito emocionante. Talvez o melhor dia da minha vida, depois da Alternativa", recorda.

'EL AFRICANO'

Foi sempre conhecido como o único toureiro negro do Mundo, ‘El Africano’, como lhe chamavam ‘nuestros hermanos’. Mas isso eram apenas títulos que até o enchiam de orgulho. Ricardo Chibanga nunca se sentiu discriminado por causa da cor da pele. "Pelo contrário. Senti sempre que me estimavam muito. Os brancos vibravam com o meu toureio, levavam-me em braços. Ainda hoje tenho muitos amigos neste meio. Reconhecem-me na rua. É bom sentir todo esse carinho. Só posso dizer ‘obrigado’..." E assim é. Rui Salvador não hesita em deixar os seus afazeres quando é necessário ir abrir a porta da praça de touros de Tomar para fotografar o mestre Chibanga para as páginas da ‘Domingo’. "É um senhor. Eu era miúdo e lembro-me bem de o ver tourear. E por acaso depois até tivemos a sorte de tourear juntos", reconhece o cavaleiro tomarense, figura de proa nas lides. Chibanga foi feliz. Ainda é, por causa de toda a glória que alcançou. O que não significa que tenha chegado a rico. "Não me lembro de quanto é que era o meu cachet. Os empresários é que mandavam em mim. A temporada ia de abril a novembro e depois eles só acertavam as contas em janeiro. Mas nunca tive razões de queixa porque o que me dava felicidade era tourear e vencer o touro. Isso é que era a festa e a realização. Mas o dinheiro que tinha dava bem para comprar aquilo que queria. Deu para comprar a casa em que vivo hoje, na Golegã, por exemplo. Onde se ganhava melhor era nas Américas, porque aí eles pagavam diretamente", revela. Viveu também em Espanha durante alguns anos, mas foi por cá que formou família. A mulher era aficionada, mas foi numa outra festa que a conheceu. "Casámos em Fátima, porque tinha de ser assim. Eu tenho muita fé. Deus ajudou-me sempre. Nunca entrava numa arena sem rezar. Por isso, tinha de me casar também com a bênção de Nossa Senhora. Tivemos uma filha e um neto", confidencia. Hoje, Ricardo Chibanga vai ocupando os seus dias a seguir as touradas pela televisão, a ver as traquinices do neto e a promover a festa, pois detém ainda uma praça desmontável que aluga para que outros levem em digressão. Caminha sem pressas pelas ruas da Golegã. No extremo norte da vila, uma placa toponímica mostra a homenagem prestada pelo município do distrito de Santarém, que fica a 120 quilómetros de Lisboa: "Rua Ricardo Chibanga, Matador de Touros, Aluno da Escola de Toureio da Golegã, que tomou Alternativa na Real Maestranza de Sevilha, em 15 de Agosto de 1971" – lê-se. "É a simpatia e o afeto que esta terra tem por mim. É a segunda terra da minha vida. Só tenho que dizer obrigado. E tenho a certeza de que, se um dia precisasse de um prato de comida, não haveria ninguém na Golegã ou mesmo em Portugal que mo negasse." Ao seu jeito, Chibanga parece fazer suas as palavras do poeta: tudo vale a pena…

TRIUNFOS NOS QUATRO CANTOS DO MUNDO

Ricardo Chibanga nasceu a 8 de novembro de 1942 em Mafalala, um dos maiores bairros da então capital de Moçambique Lourenço Marques. Veio para Portugal em 1962, para aprender a tourear, e instalou-se na Golegã. A pulso, foi conquistando primeiros as feiras, depois as arenas. Em 1968 saiu em ombros do Campo Pequeno e a partir daí a fama começou a espalhar-se pelo Mundo inteiro. Sevilha, Madrid, Barcelona, sul de França foram palcos apoteóticos para a sua arte. Chibanga somou triunfos como poucos. Depois o matador africano atravessou o Atlântico para encantar a Monumental do México, as praças da Venezuela, Colômbia e Califórnia. Conheciam-no como ‘El Africano’ e de facto assim era. O primeiro de sempre.


Texto e Fotografias: Revista Domingo (CM - Correio da Manhã) Por:Vanessa Fidalgo

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